Feito o deposito, Gilliatt fez a forja.
A segunda anfractuosidade escolhida por Gilliatt offerecia ura refugio, especie de garganta, assaz profunda. Gilliatt teve ao principio a idéa de dormir ahi, mas o vento, renovando-se constantemente, era tão continuo e teimoso nesse corredor que elle teve de renunciar á morada. O vento deu-lhe idéa de fazer forja. Se a caverna não podia ser quarto, podia ser officina. Utilisar o obstaculo é um grande passo para o triumpho. O vento era o inimigo do Gilliatt, Gilliatt resolveu fazer delle o seu lacaio.
O que se diz de certos homens:—proprios para tudo, bons para nada,—póde-se dizer das cavas de rochedo. Não dão o que offerecem. Tal cava de rochedo é uma banheira, mas deixa escapar a agua; outra é um leito de musgo, porém molhado; outra é uma cadeira, mas de pedra.
A forja que Gilliatt queria estabelecer estava esboçada pela natureza; mas domar esse esboço, até torna-lo appropriado, e transformar a caverna em laboratorio, nada mais áspero e difficil. Com tres ou quatro rochas largas, abertas como funil, e abrindo para uma fenda estreita, o acaso fizera alli um vasto foles informe, muito melhor que os antigos foles de quatorze pés de comprimento, que davam por cada vez, noventa e oito mil polegadas de ar. Aquillo era outra cousa. As proporções de operação não se calculam.
O excesso de força era incommodo; era difficil regularisar aquelle sopro.
A caverna tinha dous inconvenientes; o ar e a agua atravessavam de um lado para o outro.
Não era a onda, era um pequeno esgoto perpetuo, mais semelhante a uma distillação que a uma torrente.
A espuma, continuamente lançada pela ressaca sobre o escolho, algumas vezes a mais de cem pés no ar, acabara por encher de agua do mar uma bacia natural situada nas altas rochas que dominavam a excavação. A abundancia de agua nesse reservatorio fazia, um pouco atraz, no declive, uma pequena quéda d’agua, de cerca de uma polegada, cahindo de quatro a cinco toezas. Ajuntava-se a isso um contingente de chuva. De tempos a tempos, uma nuvem de passagem derramava algumas gotas naquelle reservatorio inexgotavel, e sempre transbordando.
A agua era salobra, não potavel, mas limpida, embora salgada. A quéda escorria graciosamente nas extremidades dos filamentos verdes como nas pontas de uma cabelleira.
Gilliatt pensou em servir-se dessa agua para disciplinar o vento. Por meio de um funil de dous ou tres tubos de taboas, arranjados á pressa, sendo um de torneira, e de uma larga tina disposta como reservatorio inferior, sem contrapeso, Gilliatt que era, como dissemos, um pouco ferreiro e um pouco mecanico, conseguio compor, para substituir o folle da forja, que não tinha, um apparelho menos perfeito do que aquelle que se chama hoje cagniardelle, porém menos rudimentario do que o que se chamava outrora nos Pyreneos uma trompa.
Tinha farinha de centeio, fez cola, tinha corda branca, fez estopa. Com essa estopa e essa cola, e alguns pedacinhos de pão, tapou elle todas as fendas do rochedo, deixando apenas um bico, feito com um pedaço de espoleta que achou na Durande e que servira á pedra de signal. O bico ficava horisontalmente dirigido contra uma larga pedra onde Gilliatt poz a lareira da forja. Gilliatt fez uma rolha para tapar o bico quando fosse preciso.
Depois disto, Gilliatt ajuntou carvão e lenha na lareira, arranjou a pedra de ferir fogo no proprio rochedo, fez cahir a faisca em um punhado de estopa, com a estopa acesa acendeu a lenha e o carvão.
Experimentou o folle. Era admiravel.
Gilliatt sentio essa altivez de cyclope, senhor do ar, da agua e do fogo.
Senhor do ar, deu ao vento uma especie de pulmão, creou no granito um apparelho respiratorio, e fez um folle; senhor da agua, da pequena cascata fez um tubo; senhor do fogo, tirou a flamma daquelle rochedo inundado.
Estando a escavação quasi toda aberta, o fumo sahia livremente, enegrecendo o rochedo. Aquelle rochedo que parecia feito para a espuma, conheceu a ferrugem.
Gilliatt tomou por bigorna um seixo multicor offerecendo a forma e as dimensões que se quizesse. Era uma perigosa base para bater, e podia acontecer que rebentasse. Uma das extremidades do seixo, arredondada, e acabando em ponta, podia a rigor figurar de bigorna conoide, mas faltava a bigorna pyramidal. Era a antiga bigorna de pedra dos Troglodytas. A superficie polida pela agua, tinha a rigidez do aço.
Gilliatt lastimava não ter trazido a sua bigorna. Como ignorava que a Durande estivesse partida pelo meio, esperava achar toda a ferramenta de carpintaria, ordinariamente collocada no porão da prôa. Ora, era exactamente a prôa que faltava.
As duas escavações, conquistadas no escolho por Gilliatt, eram visinhas uma da outra. O deposito e a forja communicavam-se.
Todas as noites, acabado o trabalho, Gilliatt ceava um pedaço de biscouto molhado em agua, um ursosinho d’agua, ou algumas castanhas do mar, caça unica daquelle rochedo, e tiritando como a corda, trepava para ir dormir na grande Douvre.
A especie de abstracção em que Gilliatt vivia, augmentava-se pela materialidade das suas occupações. A realidade era em alta doze. O trabalho corporal com os seus pormenores innumeraveis não diminuia a estupefacção que sentia de achar-se alli, e de fazer o que estava fazendo. Ordinariamente o cançasso material é um fio que puxa para terra; mas a propria singularidade do trabalho emprehendido por Gilliatt, mantinha-o em um trabalho de região ideal e crepuscular. Parecia-lhe ás vezes estar dando martelladas nas nuvens. Outras vezes parecia-lhe que as suas ferramentas eram armas. Tinha o singular sentimento de um ataque latente que elle repellia ou prevenia. Tecer maçame, desfiar uma vela, escorar duas pranchas, era fabricar machinas de guerra. Os mil cuidados minuciosos deste salvamento acabavam por assemelhar-se a precauções contra as aggressões intelligentes, mui pouco dissimuladas e muito transparentes. Gilliatt não sabia as palavras que exprimem as idéas, mas percebia as idéas. Sentia-se cada vez menos operario e cada vez mais pelejador.
Entrou alli como um domador. Comprehendia isso quasi. Estranha ampliação para o seu espirito.
Além disso, tinha á roda de si, a perder de vista, o immenso sonho do trabalho perdido. Nada mais perturbador do que vêr manobrar a diffusão das forças no insondavel e no illimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a agua infatigavel, as nuvens que parecem affadigadas, o vasto esforço obscuro, toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpetuo tremor? que construem estes ventos? que levantam estes abalos? Em que se occupam os choques, os soluços, os gritos? que faz todo esse tumulto? O flux e reflux dessas questões é eterno como a maré. Gilliatt sabia o que fazia; mas a agitação da extenção era um enigma que o aturdia confusamente. Sem querer, mecanicamente, imperiosamente, por pressão e penetração, sem outro resultado mais que uma fascinação inconsciente, e quasi feroz, Gilliatt pensativo ajuntava ao seu trabalho, o prodigioso trabalho inutil do mar. Na verdade, como não impressionar-se e sondar alli á vista, o mysterio da tremenda vaga laboriosa? Como não meditar, na proporção, da meditação que se tem, a oscilação da onda, a impetuosidade da espuma, a usura imperceptivel do rochedo, o esfalfamento insensato dos quatro ventos? Que terror para o pensamento não é o recomeçar perpetuo, o oceano poço, as nuvens Danaydes, todo esse trabalho para cousa nenhuma!
Para cousa nenhuma, não; só o Ignoto o sabe!