Sunday, 06/10/2024 - 08:38
07:56 | 28/06/2019
Houve, uma vez, um jovem caçador que andava pela floresta à espreita de caça. Era um moço alegre e vivaz, com o coração cheio de bondade.
Andava ele distraído, assobiando tranquilamente, quando deparou sentada, sobre uma folha, uma velhinha muito feia, que lhe disse:
– Bom dia, meu bom caçador; tu estás alegre e satisfeito, mas eu estou morrendo de fome e de sede: dá- me uma esmolinha, por favor!
Ouvindo isso, o moço condoeu-se da sorte da velhinha, meteu a mão no bolso e deu-lhe o que trazia consigo. Em seguida, dispôs-se a continuar o seu caminho, mas a velhinha deteve-o, dizendo:
– Meu caro caçador, ouve o que te vou dizer; quero dar-te um presente pela tua generosidade. Continua andando e daqui a pouco chegarás ao pé de uma grande árvore, sôbre a qual verás nove pássaros brigando por causa de um manto, que seguram com as patinhas. Aponta a tua espingarda e atira no meio dêles; êles deixarão cair o manto, e com êle cairá morto também um dos pássaros. Apanha o manto, que é mágico; quando o vestires e desejares estar num lugar qualquer, êle logo te transportará. Tira o coração do pássaro morto e engole-o inteiro; assim, tôdas as manhãs, ao despertares, encontrarás uma moeda de ouro sob o travesseiro.
O caçador agradeceu gentilmente a velha, pensando consigo mesmo: “Belíssimas promessas! Ah, se realmente se realizassem!” E foi andando.
Não dera mais que cem passos e ouviu um pipilar estridente entre os galhos, bem em cima de sua cabeça; ergueu os olhos e viu um bando de pássaros disputando entre si um pano, puxando-o com as patinhas e os bicos, enquanto soltavam pios e se debicavam terrivelmente, querendo cada qual ficar com o manto para si.
– Ora veja! – exclamou o caçador: – exatamente como disse a velha avozinha.
Tirou a espingarda do ombro, fêz pontaria e disparou sôbre o bando, do qual se espalharam as penas por todos os lados. Os pássaros imediatamente fugiram, pian- do assustados, mas um dêles caiu morto, juntamente com o manto.
O caçador apanhou-os e, conforme lhe dissera a velha, destripou a ave e engoliu o coração, sem mastigar; depois pegou o manto e foi-se embora, voltando para casa.
Na manhã seguinte, assim que acordou, veio-lhe ao pensamento a promessa da velha e quis certificar-se da
veracidade de suas palavras; levantou o travesseiro e, realmente, lá estava uma moeda de ouro brilhando intensamente. Na manhã seguinte, encontrou outra e assim foi em tôdas as manhãs sucessivas. Depois de juntar uma bela pilha de moedas, o rapaz pensou: “Para que me serve tanto ouro, se fico trancado aqui em casa? Quero ir-me por êste mundo afora e ver outras terras.”
Tendo resolvido isto, despediu-se dos pais, pegou a espingarda e o sapicuá e partiu.
Depois de muito andar, deparou com uma grande floresta, atravessou-a e, chegando à extremidade oposta, viu surgir no meio da planície um magnífico castelo. Numa das janelas estavam debruçadas uma velha e uma linda môça, olhando para baixo. A velha, que era uma bruxa, disse à môça:
– Veja, lá vem saindo um rapaz da floresta. Êle traz no corpo um precioso tesouro; meu amor, nós temos que nos apoderar dêle. Isso aproveita muito mais a nós do que a êle. E’ o coração de um pássaro que êle tem no estômago, graças ao qual encontra tôdas as manhãs uma moeda de ouro debaixo do travesseiro.
Explicou direito as coisas à môça, ensinando-lhe o que deveria fazer e, fitando-a com olhar ameaçador, concluiu:
– Ai de ti, se não me obedeceres!
Tendo-se aproximado do castelo, o caçador avistou a linda jovem e disse de si para si: “Andei tanto que estou bem cansado; preciso repousar um pouco e pedir pousada nesse castelo. Dinheiro, não me falta; tenho até demais.” Mas a verdade era que seus olhos ficaram encantados com aquela beldade.
Entrou no castelo, onde foi cordialmente recebido e hospedado com grande amabilidade. Não demorou muito e se apaixonou pela linda môça, filha da bruxa, e de tal forma que já não pensava mais em nada, só via pelos olhos dela e fazia tudo o que ela lhe pedia. Então a velha, vendo como estavam as coisas, disse:
– Minha filha, agora temos que nos apoderar do coração do pássaro; verás, êle nem de leve se aperceberá e não sentirá nenhuma falta.
Prepararam uma infusão e, quando ficou pronta, a velha encheu um copo, dando-o à filha para que lha levasse. A môça disse-lhe:
– Toma isto meu querido, à minha saúde!
Sem suspeitar coisa alguma, o rapaz levou o copo à bôca, bebendo tudo; assim que acabou de ingerir a infusão, vomitou o coração do pássaro. A môça pegou-o dis- farçadamente e engoliu-o, pois a velha assim recomendara.
Dai por diante êle nunca mais encontrou a moeda de ouro sob o travesseiro, a qual passou a brilhar diariamente sob o travesseiro da môça, onde a velha ia buscá-la todas as manhãs. O rapaz estava tão perdidamente apaixonado, que não pensava em mais nada além de poder ficar sempre ao lado da môça. Então a bruxa disse:
– O coração do pássaro já está em nosso poder, agora temos também que lhe tirar o manto mágico.
A môça respondeu:
– Deixemos-lhe ao menos isso, já que perdeu a fortuna!
A velha, porém, zangou-se e gritou:
– Um manto dessa espécie é coisa extraordinária, que mui raramente se encontra neste mundo; quero possuí-lo, custe o que custar.
Ensinou-lhe como devia proceder, acrescentando que se não lhe obedecesse, viria a arrepender-se amargamente.
A môça não tinha outra solução senão obedecer. Aproximou-se da janela e fitou o horizonte distante, fingindo uma grande tristeza. O rapaz então perguntou- -lhe:
– Por quê estás tão triste?
– Ah, meu tesouro, – respondeu ela – essa montanha que vês lá ao longe, é a montanha de rubis; tôda ela está cheia dessas pedras maravilhosas. Tenho um imenso desejo de possuí-las e, sempre que olho para lá, fico muito triste. Mas, quem é que pode ir buscá-las! Somente os pássaros que voam podem ir lá e nunca um homem!
– Se é apenas essa a tua tristeza, – disse o caçador – é muito fácil curá-la.
Tomou-a nos braços, sob o manto, e exprimiu o desejo de ser transportado para lá. Imediatamente foram levados os dois até ao alto da montanha. As pedras preciosas cintilavam por tôda parte, numa verdadeira alegria para os olhos. Os dois apressaram-se a apanhar as mais belas e atraentes, enchendo com elas os bolsos.
Entretanto, por arte mágica da bruxa, o caçador começou a sentir as pálpebras pesarem-lhe, e então disse à môça:
– Vamos descansar um pouco; sentemo-nos aí, estou tão cansado que não agüento mais.
Sentaram-se os dois; o rapaz reclinou a cabeça no regaço dela e adormeceu. Quando o viu profundamente adormecido, ela tirou-lhe o manto, recolheu tôdas as pedras e rubis e desejou encontrar-se logo em casa.
Ao despertar, o caçador viu que sua amada o havia enganado, abandonando-o sozinho naquela montanha agreste.
– Oh! – exclamou, desolado – quanta perversidade existe neste mundo!
Ficou profundamente abatido e amargurado, sem saber o que devia fazer. A montanha pertencia a alguns ferozes, medonhos gigantes, que lá residiam e faziam as piores coisas. Não demorou muito, o rapaz avistou três dêles, que se aproximavam a largos passos; com mêdo, deitou-se, fingindo-se profundamente adormecido. Os gigantes chegaram perto dêle e um lhe ministrou tremendo pontapé, dizendo:
– Que espécie de vermículo é êste que aí está a olhar a barriga?
Disse o segundo:
– Esmaguemo-lo!
Mas o terceiro disse, com todo o desprêzo:
– Nem vale a pena! Deixai-o viver; êle não poderá viver aqui e irá certamente até ao cume, e aí as nuvens o carregarão.
Assim conversando, prosseguiram o caminho. Mas o caçador prestara bem atenção ao que tinham dito, e assim que êles se afastaram, levantou-se e trepou até ao cump da montanha. Daí a pouco, baixou uma nuvem que estava balouçando no espaço, agarrou-o e levou-o consigo. Durante algum tempo, ela andou vagueando pelo azul do céu, depois foi descendo até pousar numa grande horta, tôda cercada de muros, e depositou-o suavemente entre as couves e outras hortaliças.
O caçador olhou em redor e disse:
– Se tivesse ao menos alguma coisa para comer! Estou com tanta fome e não poderei continuar o meu caminho! Aqui, porém, não vejo peras, nem maçãs, nem outras frutas; não há senão hortaliças.
Por fim pensou:
– Por falta de coisa melhor, comerei um pouco de alface; não é lá muito saborosa, mas é fresca.
Escolheu uma bela cabeça de alface e pôs-se a comê- -la; mas, apenas engolira alguns bocados, sentiu uma estranha sensação e pareceu-lhe estar completamente mudado.
Cresceram-lhe quatro pernas, uma grande cabeça com duas orelhas compridas e, com imenso terror, viu que se transformara num asno. Todavia, continuava com muita fome e, graças à sua nova natureza, a alface tornou-se-lhe bem agradável e dela comeu fartamente. Chegando a outro canteiro, avistou uma espécie diferente de alface; mal apenas comeu algumas folhas, sentiu-se novamente transformado, readquirindo o aspecto humano.
Então, tendo saciado a fome, o caçador deitou-se e dormiu tranquilamente. Na manhã seguinte, ao despertar, colheu um pé de alface boa e um pé de alface ruim, pensando: “Isto me servirá para recuperar as minhas coisas e castigar a perversidade.” Colocou os pés de alface no sapicuá e, saltando o muro, dirigiu-se ao castelo de sua amada.
Durante dois dias andou perambulando mas, por fim, encontrou-o. Pintou rapidamente o rosto, de modo que nem mesmo sua mãe o teria reconhecido; depois foi ao castelo e pediu pousada.
– Estou tão cansado que não posso mais ir para a frente.
A bruxa perguntou-lhe:
Quem sois e qual é vossa profissão?
– Sou um mensageiro do rei, – disse o rapaz – o qual me mandou em busca da melhor alface que existe no mundo. E tive a felicidade de encontrá-la; veja, trago-a aqui. Mas o sol está tão quente que ameaça queimar a tenra folhagem; não sei se poderei levá-la mais longe.
Ouvindo falar dessa alface melhor do mundo, a bruxa ficou com água na bôca e disse:
– Meu caro campônio, deixa-me provar uma folhinha dessa maravilhosa alface, sim?
– Por quê não? – respondeu êle – levo dois pés dela, posso perfeitamente dar-vos um.
Abriu o sapicuá e tirou a alface ruim, oferecendo-a à velha. Esta não imaginou sequer que houvesse algum mal nela. A alface punha-lhe a bôca cheia de água; rápida, correu à cozinha e pessoalmente a temperou.
Assim que ficou pronta não teve paciência de esperar que fôsse para a mesa, ali mesmo começou a comê- la. Apenas comeu algumas folhas, imediatamente perdeu o aspecto humano transformando-se em asno e saiu a correr e a pinotear pelo quintal.
Nisso a criada entrou na cozinha, viu a salada pronta e foi levá-la para a mesa; mas, pelo caminho, cheia de gulodice, tirou uma fôlha e comeu-a. No mesmo instante, a alface transformou-a num asno também e saiu a correr para o quintal, junto de sua ama, deixando cair o prato de salada no chão.
Enquanto isso, o caçador estava ao lado da bela jovem e, vendo que ninguém aparecia com a famosa salada, da qual ela morria de desejo, a môça disse:
– Quem sabe onde está a tal salada?
O caçador pensou: “Acho que já produziu o efeito desejado!” E, em voz alta:
– Vou até à cozinha saber o que está acontecendo.
Quando chegou lá embaixo, viu as duas mulas correndo e saltando no quintal, enquanto que o prato de alface estava largado no chão.
– Ótimo! – exclamou êle. Aquelas duas já receberam a sua parte! Apanhou as folhas que sobraram arrumou-as direitinho no prato e levou-as à môça, dizendo:
– Eu mesmo trago esta delícia; ei-la! Acho que não deveis esperar mais tempo.
Ela serviu-se avidamente e logo perdeu o aspecto humano, como as outras, e saiu a correr para o quintal, transformada em mula.
O caçador, então, foi lavar-se cuidadosamente para que elas o pudessem reconhecer; depois desceu até o quintal e disse:
– Agora recebereis o prêmio pela vossa perversidade.
Amarrou as três com uma corda e arrastou-as consigo. Logo depois chegou a um moinho; bateu à porta e o moleiro chegou à janela, perguntando o que desejava.
– Tenho aqui três jumentas indomáveis, das quais pretendo me desfazer. Se quiseres ficar com elas, providenciar forragem e comida suficiente, e tratá-las como quero eu, pagarei o que me pedires.
– Como não? – disse o moleiro – Como é que devo tratá-las?
Então o caçador disse que devia dar à jumenta mais velha – que era a bruxa, – três rações dc pancadas por dia e uma ração de comida; à segunda – que era a criada, – devia dar uma ração de pancadas e três de forra-
gem; e à terceira, – que era a môça – nem uma pancada e três rações de forragem; porque não suportava que a espancassem.
Em seguida voltou ao castelo e encontrou tôdas as suas coisas.
Alguns dias depois, apareceu o moleiro, dizendo que a mula velha, em conseqüência das três rações de pancadas e uma só de comida por dia, havia morrido.
– As outras duas, – continuou – ainda não morreram e continuo dando-lhes comida três vêzes por dia, mas andam tão tristes que, certamente, não viverão muito.
O caçador, então, condoeu-se, esqueceu a sua raiva e disse ao moleiro que as trouxesse para o castelo. Quando chegaram, deu às duas algumas folhas de alface boa e imediatamente elas readquiriram o aspecto normal.
A linda môça caiu-lhe aos pés, soluçando, e disse-lhe:
– Meu amor, perdôa-me o mal que involuntariamente te causei; fui obrigada por minha mãe, mas arrependo- me sinceramente, porque te amo de todo o coração. O teu manto mágico está guardado no armário; quanto ao coração do pássaro tomarei qualquer coisa que me faça vomitá-lo.
O rapaz então mudou de idéia e exclamou:
– Podes ficar com êle, é a mesma coisa; porque serás a minha querida e fiel esposa.
Pouco depois, casaram-se e viveram extremamente felizes até o fim da vida.

 



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